quinta-feira, 7 de dezembro de 2000

A Acqua-Alta veneziana


A Piazza San Marco é um dos locais mais turísticos, não só de Veneza, mas de todo mundo. Por isso, não será provável que lá se encontrem quaisquer vestígios daquele ambiente misterioso e melancólico que associamos à cidade dos canais. Talvez pela própria arquitetura ou pela sua geografia prodigiosa, ou porventura pelas máscaras venezianas, uma imagem icónica local, sempre imaginei esta cidade italiana como um espaço enigmático e quase secreto. 

Mas isso foi antes da minha primeira visita à cidade de Veneza, há já muitos anos. Desde então, de quase todas as vezes que por lá passei, a Piazza San Marco surge sempre como uma espécie de atração principal do imenso parque de diversões em que a cidade se transforma diariamente, para desfrute dos milhares de turistas que por lá andam. 

Mas ainda assim, jamais deixo de apreciar as principais atrações que a praça nos oferece. Desde logo a própria Basílica di San Marco, um exemplo colossal da arquitetura bizantina, inspirado na basílica turca de Santa Sophia, ou o imponente campanário, Il Campanile di San Marco, um dos principais símbolos de Veneza, com a sua torre revestida a tijolo, que se ergue a 98m de altura, do alto da qual é possível contemplar uma panorâmica completa da cidade. 

E há ainda o conjunto de arcadas dos edifícios de São Marcos, onde encontramos alguns cafés clássicos e charmosos, como o Caffè Florian. Sendo a mais distinta cafetaria deste local e a mais antiga de toda a Itália, o Caffè Florian tem um lastro histórico incontornável, onde se regista a passagem de alguns frequentadores mais ilustres, como Lord Byron, Marcel Proust ou Charles Dickens. 


Mas de todas a visitas que fiz a esta cidade italiana, só uma delas se revelou realmente peculiar, aquela que fiz em dezembro de 2000. Ao contrário do frenesim que se encontra no Verão ou na Primavera, naquele dezembro, juntando-se um inverno chuvoso às marés mais vivas, surgiram sinais da subida do nível das águas, inundando as zonas mais baixas da cidade, a chamada Acqua-Alta

Acqua-Alta, Acqua-Alta” . . . ecoam as vozes que acompanham o som dos sinos ou das sirenes que anunciam o evento. O céu fica negro, os venezianos começam a aparecer de chapéu de chuva e galochas e vêem-se passadiços de madeira sobrelevados, para acesso às zonas mais baixas da Piazza San Marco.

E, o mais importante, é que os turistas fogem e devolvem-nos a cidade... devolvem-na sobretudo aos venezianos, mas também a nós, aos que ali víamos surgir os primeiros traços de mistério e encantamento, de tantas memórias ficcionadas sobre este local. 

Junto ao paredão da Riva degli Schiavoni e ao extenso ancoradouro, onde as gondolas se protegem, o mar preparava-se para galgar a piazza, numa envolvente rara e encantadora... e uma paisagem melancólica ia-se formando, mostrando a silhueta difusa da bellissima isola di San Giorgio Maggiore. 

Carlos Prestes 
Dezembro de 2000