Acabado de chegar a Gatwick percorri os primeiros 140 km para Leste, até ao Canal da Mancha, sempre com uma estranha sensação de quem conduz perigosamente fora-de-mão. Era o meu primeiro percurso desta viagem por Inglaterra e escolhi começar pela cidade de Dover, uma zona portuária, onde saem e chegam as principais ligações via marítima para a travessia da Mancha, e é também onde o túnel ferroviário, que liga Inglaterra ao velho continente, se afunda sob as profundezas do canal.
Mas aquilo que me levou a Dover não foi, nem a cidade nem as infraestruturas portuárias, mas antes as grandes falésias, as White Cliffs of Dover, que definem o contorno da ilha e marcam a fronteira entre o mar e a terra, na parte mais estreita do canal.
Pertencem a um parque natural preparado para acolher os visitantes, onde fizemos uma longa caminhada pelos estreitos carreiros assinalados no mapa. Chegámos assim aos pontos de observação preferencial sobre as falésias, experimentando uma sensação vertiginosa e quase assustadora, sobretudo nalguns dos trilhos mais marginais.
O local é imponente e as falésias muito altas, chegando aos 110 m de altura, e quase verticais, caindo abruptamente sobre ao mar, parecendo perigosamente instáveis e na iminência de uma derrocada. E depois há aquela cor branca tão rara, pela sua composição à base de giz, e que faz com que a imagem deste local seja tão especial e quase um ex-libris da ilha.
Mas estas falésias valem muito mais do que apenas a paisagem que observamos. São também um símbolo importante para a Inglaterra, por constituírem uma primeira muralha com que as invasões inimigas se depararam, sempre que o país foi ameaçado pelo exterior ao longo da sua história. E num dos momentos mais simbólicos em que as falésias de Dover foram inscritas na história deste país, aconteceu em plena Segunda Guerra Mundial, em maio de 1940.
As forças alemãs atacaram os Países Baixos derrotando as tropas francesas e a Força Expedicionária Britânica, que defendiam aquela zona Ocidental da Europa, e começavam a dirigir-se até ao Canal da Mancha. Apesar dos esforços das forças aliadas não foi possível conter o avanço alemão, que foram empurrando as tropas inglesas até à praia francesa de Dunkirk, onde ficariam encurraladas à mercê dos ataques alemães.
Antecipava-se uma terrível carnificina e uma derrota épica para as tropas britânicas, com cerca de 400 mil soldados, completamente impotentes face ao poder dos ataques alemães, presos entre o mar e o exército e a aviação inimigos.
Mas, do outro lado do canal, Winston Churchill planeava uma operação arrojada de resgate. A Royal Air Force enviaria vários aviões para travar as ações da força aérea alemã mas, ainda assim, um resgate de tantos soldados por mar obrigaria a uma frota de embarcações de que a Inglaterra não dispunha, nem conseguiria obter, apesar dos esforços junto dos aliados, nomeadamente dos Estados Unidos.
Foi assim, por não lhe restar outra solução, que Churchill arriscou uma intervenção ambiciosa e inédita, conhecida como "Operação Dínamo", apelando a todos os proprietários de pequenas embarcações de pesca ou recreio que, respondendo afirmativamente, atravessaram o canal chegando a Dunkirk para recolha dos compatriotas em perigo. E foi dessa forma, em milhares de pequenos barcos tripulados por civis, que foram resgatados cerca de 400 mil soldados, maioritariamente britânicos, num desfecho que Churchill apelidou de “Milagre de Dunkirk”.
No final de cada trajeto de resgate, os soldados britânicos, que escapavam desesperadamente a uma morte quase certa, encontravam o seu porto seguro e uma sensação acolhedora de redenção, quando na linha do horizonte se materializava a silhueta das imensas Cliffs of Dover, aquela praia inglesa que era também a imagem de um milagre e o consolo emocionado de um regresso a casa.
E do alto das falésias de Dover, ao contemplar o mar infinito, ali à nossa frente, era bem evidente a sensação de que aquele lugar guardava muito mais do que aquilo que nos parecia mostrar. Um imenso lastro de séculos de história e uma carga mística incontornável, por tantos episódios, como este, o Milagre de Dunkirk, que ali fomos recordando desordenadamente, enquanto o vento forte nos acariciava o rosto.
E para lá do que a vista alcançava notava-se ainda o tremendo poder do mar, fazendo-nos adivinhar a presença do imenso continente que ali se escondia logo depois da bruma que nasce nas águas, bem na linha do horizonte.
Carlos Prestes
Abril de 2014
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