segunda-feira, 27 de agosto de 2018

A riqueza dos paladares algarvios - Restaurante “O Charneco”

Neste espaço que é suposto ser apenas de escrita de viagens, às vezes tornam-se inevitáveis as referências gastronómicas. Foi o que aconteceu quando descobri alguns dos verdadeiros sabores da comida algarvia, num restaurante que é também um verdadeiro representante da gastronomia da região, e que me proporcionou a experiência que me levou a escrever esta crónica. 

Ao longo de vários anos fui conhecendo restaurantes na região do Algarve, desde as tascas mais tradicionais aos restaurantes estrelados pela Michelin, mas raramente me cruzei com os verdadeiros sabores da gastronomia regional. 

E só em agosto de 2017, no restaurante “O Charneco”, localizado no coração de Estômbar, uma pequena vila de casas brancas, situada entre Lagoa e Portimão, pude desfrutar de uma degustação completa dos paladares desta região, na sua forma mais tradicional e genuína. 

Fica logo atrás da igreja, o nome “Charneco” aparece sobre a porta, onde se refere também, para que não haja dúvida, que se trata de uma Tasquinha. A decoração é a que se espera de um restaurante típico e familiar, sem luxos nem grandes pretensiosismos, quase como se estivéssemos numa casa de família, com fotos e outros objetos pessoais. Na verdade, é um espaço descontraído onde nos sentimos bem, com um atendimento perfeito, também ele familiar. O Restaurante pertencia ao Sr. Charneco, mas, mais recentemente, a filha passou a ser a cozinheira . . . uma cozinheira que é muito mais chef do que muitos outros que assim se apelidam. 

Explicam-nos apenas o conceito, vão trazendo os pratos que prepararam para aquele dia, e só temos de escolher as bebidas, que também estão incluídas no preço do menu. 

Depois das bebidas e de um pão de fatia, que parecia o típico pão alentejano, mas que era um pão bem algarvio, começou o desfile das iguarias. 

Começaram por servir uma entrada fria numa Tábua de Queijo e Presunto e umas tigelinhas com Azeitonas, com um Picadinho de Febra de Porco, com uma Salada de Cenoura à Algarvia e com umas fatias de Muxama de Atum em azeite. A muxama é um produto feito com a mesma receita que os fenícios e os romanos utilizavam há dois mil anos. Resulta de um antigo modo de processamento do peixe, utilizando os lombos do atum, que são curados em sal grosso e depois lavados para retirar o excesso de sal, resultando numa espécie de presunto do mar, e com o aspeto muito semelhante ao do presunto. 

Da entrada passámos para a sopinha do dia, uma Tomatada quente com ovo, que em vez de escalfado tinha sido mexido na sopa, e que estava perfeitamente deliciosa. 

Os pratos iam-se sucedendo e nem sempre nos diziam do que se tratava, deixaram alguns para que adivinhássemos - foi o que aconteceu com o prato seguinte - e não adivinhámos. Era uma salada fria e tinha o tempero habitual de uma salada de polvo, com cebola picada, azeite, vinagre e salsa, mas neste caso com umas batatas cozidas e com uma iguaria que eu nunca tinha provado - Ovas de Choco - uma verdadeira delícia. 

Ainda nos frios, brindaram-nos com os tradicionais Carapaus Alimados, um prato dos mais típicos do Algarve, com os lombos de carapau salgados, que quase parecem de conserva, com rodelas de tomate algarvio, o chamado tomate rosa, e alho cru, para os mais corajosos. 

A noite foi passando e o apetite começava já a escassear depois de, nos petiscos iniciais e de forma pouco cautelosa, termos abusado do pão e do vinho. Mas não íamos deixar de cumprir a empreitada até ao fim e, assim, fomos substituindo o vinho pela água e deixámos de molhar o pãozinho. 

Chegaram os pratos quentes, mais um difícil de adivinhar. Eram pataniscas, isso dava para perceber, mas não eram de bacalhau. E de facto era um prato menos comum, tratavam-se de Pataniscas de Raia, também elas muito saborosas. 

E era a hora de fazer uma pausa, ir até ao largo da igreja, apanhar ar e esticar as pernas, para regressar à mesa para um próximo round. E este era momento-chave para essa pausa . . . é que ainda faltava uma entrada, um parto de peixe e outro de carne, e uma sobremesa, ou seja, era como se estivéssemos agora a chegar ao restaurante. 

E lá veio mais uma entrada quente e esta foi diretamente para o top. Não que se tratasse de algo raro, porque era apenas um prato de Ameijoas à Bolhão Pato, mas com ameijoas fresquíssimas da Ria de Alvor, o que fez com que o resultado final fosse sublime, talvez umas das melhores ameijoas que já provei. 

E chegámos, por fim, aos pratos principais. O prato de peixe era um Arroz de Tamboril bem malandrinho (mas já em 2018, repeti a experiência e, dessa vez, este prato foi substituído por uma excelente Massada, também ela de Tamboril). 

O prato da carne representava a influência árabe na gastronomia algarvia, um Borrego Assado com Hortelã (em 2018, este prato foi substituído por um Pernil de Porco). Quer o borrego quer o pernil estavam divinais, pena que, nessa fase, quase já não encontrávamos um espacinho no estômago. Estes jantares são uma espécie de maratona e, por isso, há que dosear o esforço para os últimos quilómetros . . . mas eu comecei logo a fazer sprints nos primeiros 100 metros. 

E achávamos que tinha acabado, tínhamos lido que eram sete pratos e já tínhamos provado oito. Mas ainda havia uma sobremesa, ou melhor, um pijama de sobremesas algarvias, com o tradicional Figo Seco com Amêndoas, uma Tarte de Laranja, uma Tarte de Alfarroba e Canela e, o meu favorito, um Don Rodrigo, o doce regional com fios de ovos e amêndoa, que vem embrulhado num saquinho de papel de prata. 

No final veio ainda um café servido num copinho de barro e a conta que, tal como tínhamos lido, foi de 25€ por pessoa. 

Terminámos assim um jantar que se transformou numa experiência que nos ficou gravada na memória, com a autenticidade da gastronomia da região, incomparavelmente melhor do que a maioria dos restaurantes algarvios que tínhamos experimentado. 

Ficámos completamente rendidos com tantos paladares e tanta comida, e totalmente satisfeitos. Fechámos uma noite, tão rica e tão extraordinária, com a certeza de que voltaríamos (e foi assim que, um ano depois, em agosto de 2018, voltámos a enfrentar o desafio que nos é propiciado e, uma vez mais, voltámos a ficar deslumbrados com a experiência que ali foi vivida. 

domingo, 20 de maio de 2018

Alegria no Trabalho no LxFactory


Tinha acabado de passar o portão de entrada no LxFactory e reparei na existência do grande depósito de água elevado, que servirá provavelmente para o abastecimento daquele lugar, e onde se podia ler com todo o destaque a frase enigmática, e ali totalmente desprovida de contexto: “Alegria no Trabalho”. 

Uma ideia curiosa que me fez subitamente alterar a minha abordagem à visita que iria fazer àquele espaço, passando a observar sobretudo quem ali estava, não como eu ou a maioria dos visitantes, mas os que ali foram trabalhar e que eram o rosto principal de um espaço que acolhia uma multidão de visitantes naquela tarde de domingo. 

E fui assim procurar alguns casos que revelassem inequivocamente esse conceito, que é tantas vezes apenas uma miragem, de que o trabalho pode ser também uma das nossas fontes de alegria e contentamento . . . e foi com esses olhos que me fiz ao caminho. 

O LxFactory é sempre um lugar muito particular e alternativo, mas aquele era um dia ainda mais especial, com o LxRural, a feira de domingo que enche o local com pequenas tendas para venda de vários artigos, sobretudo, de artesanato. 

E tudo aquilo só era possível porque, naquela manhã, várias pessoas abdicaram das suas folgas domingueiras e para ali foram, percorrendo diferentes caminhos com um mesmo destino, cumprindo mais uma etapa das suas viagens, “essas viagens de vida que todos começámos no dia em que nascemos” . . . foram essas as palavras do Zé Pedro, um português do mundo, um viajante perpétuo, vendedor de ornamentos indígenas, que apregoava orgulhosamente como originais, trazidos diretamente das colónias de índios do Brasil, como os Pataxós, com quem partilhou algumas experiências, quando o acolheram como sendo um deles e descobriram juntos cristais e outras pedras preciosas, que vendia agora em forma de brincos. 

E mais atrás, na banca Colheita d’Óbidos, vindos do Oeste, numa viagem mais curta, ou talvez bem mais distante, muito mais enquadrados em mercados de fruta tradicionais do que em feiras alternativas, como esta, um casal de fruticultores de meia idade vendia morangos das suas próprias plantações, tentando torná-los mais apelativos ao mostrarem, com satisfação, um spray de chantili que se tinham lembrado de trazer, para agradar aos clientes. 

Na tenda do Pedro Mãos de Bigode o costureiro e vendedor, sentado à máquina de costura, ia personalizando t-shirts, aplicando bolsos e outros motivos, que transformavam cada peça de roupa num artigo com assinatura, e era bem visível a sua alegria, a sua satisfação, ao perceber o reconhecimento de quem o observava, o orgulho de ver a sua criatividade apreciada. 

E ali bem perto, no interior de uma galeria de arte, um grupo falava de algo que parecia fascinante, pelos risos, as expressões nos rostos, as conversas gesticuladas. Quase parecia uma roda de amigos, mas era certamente um curso ou um workshop. Descobri depois, quando saíram e se misturaram com a multidão, que o curso era organizado pelo Filipe, um portuense que tinha preparado os conteúdos e partilhava ali as suas experiências entusiasmantes de viajante pelo mundo, ensinando técnicas para escrita de viagens. 

E ali estava o paradigma acabado . . . o do eterno viajante, fotógrafo e escritor . . . talvez o exemplo mais evidente para ilustrar esta imagem que me inspirou ao longo daquela tarde de domingo, de que um trabalho pode muito bem ser, uma imensa e vibrante alegria. 

Carlos Prestes 

sábado, 27 de janeiro de 2018

O poder do pôr-do-sol em Marraquexe

Em 1985 a UNESCO atribuiu o título de Património Mundial Imaterial à Praça Jemaa el-Fna, elegendo, dessa forma, não apenas aquele espaço que a praça ocupa, mas sobretudo a mística que a envolve e que faz dela um lugar inesquecível. 

Foi essa a mística que nos tocou logo na primeira tarde, mal tínhamos chegado a Marraquexe e corremos para aquele local, um autêntico coração palpitante da cidade, onde todas as suas artérias desaguam.

E não quisemos esperar mais, subimos de imediato à esplanada do Café Glacier e contemplámos toda a excitação de uma praça que despertava ali bem à nossa frente. E por lá nos deixámos ficar, por lá nos demorámos. Esperámos que o sol se pusesse e que o poder da noite se instalasse... e deixámos que aquele lugar mágico nos comovesse. 

E a imagem que nos ia envolvendo revelava agora os tons quentes do sol que se encobria por detrás da Mesquita da Koutoubia... despertando aquela praça imensa e dando-lhe vida, ritmo e brilho, à medida que o sol se ia escondendo.

Carlos Prestes 
Janeiro de 2018

Voltar à página inicial

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O chá do deserto

No contacto com as famílias nómadas junto às dunas majestosas do deserto marroquino de Erg Chebbi, fomos convidados a entrar numa das suas tendas onde nos ofereceram chá e frutos secos em troca de nada, só pela hospitalidade e simpatia. 

Foi um chá diferente do habitual chá marroquino, saboroso como costuma ser o chá de menta, mas este com um significado muito especial, por nos ter sido oferecido por quem nada tem e, ainda assim, quis que nos sentíssemos bem-vindos.

E enquanto tomávamos o chá nem imaginávamos como é que conseguiriam garantir reservas de água para toda a família num local tão ermo como aquele, sem quaisquer vestígios de ribeiros ou nascentes. E só mais tarde soubemos algo surpreendente, é que o deserto de dunas contém água no seu subsolo a poucos metros de profundidade. E é a partir de poços feitos nessa zona de extensos areais que as famílias nómadas se abastecem.

E foi então que percebemos qual era o meio de transporte usado para o abastecimento de água e, sobretudo, qual era o sistema de armazenamento... confesso que foi um pouco assustador, pensar que a água do nosso chá tinha vindo daqueles garrafões... felizmente a água é bem fervida e, com sorte, terá matado toda bicheza.
Depois de algum tempo junto àquela família de nómadas, saímos do acampamento com uma sensação estranha, como se a vida daquelas pessoas nos tivesse sido revelada como um ensinamento, uma lembrança que não iríamos esquecer e que nos deveria servir de referência para alguns momentos e decisões importantes das nossas vidas.

Os nómadas marroquinos

Pensávamos estar prontos para todo o tipo de experiências durante a viagem que íamos fazer até ao deserto marroquino de Erg Chebbi, mas nada nos podia preparar para momentos como aqueles que vivenciámos no contacto direto com os nómadas... famílias que optam por uma forma de vida sem destino e sem imposição de regras, preservando acima de tudo a sua liberdade.

Pode parecer uma visão algo poética desta condição mas, pelos relatos do Ahmed, o driver berbere que nos acompanhou por estas paragens, e que entende bem o espírito e a motivação destes povos, apercebemo-nos que, para eles, o mais importante é a sua condição de seres livres e donos do seu próprio destino. Rejeitam as regras a que os sistemas de comunidades ou aldeias se obrigam, e rejeitam também a própria cidadania, não se sentem marroquinos ou argelinos ou de qualquer outro país, são cidadãos livres de um deserto sem fronteiras e, naturalmente, não reconhecem qualquer legitimidade à figura do rei de Marrocos... revêm-se apenas em Alá enquanto muçulmanos devotos. 

Um dos maiores problemas daquele modo de vida, contou-nos o Ahmed, numa revelação surpreendente, é a dificuldade em fazer com que as crianças consigam ir à escola. Que coisa estranha e ao mesmo tempo tão fascinante, vidas totalmente despojadas de bens de conforto, mas conscientes da importância de levar as suas crianças à escola, para lhes abrir horizontes e dar-lhes a possibilidade de poderem fazer as suas próprias escolhas na altura certa. 

Soubemos no início do dia que nos iríamos cruzar com algumas crianças nómadas, porque o Ahmed quis levar bolos e guloseimas para lhes dar, mas não estávamos à espera de uma proximidade tão tocante, nem de uma experiência tão rica. 

Estivemos com grupos de crianças de várias famílias e em vários locais, e todas tinham aquele olhar envergonhado, com os rostos fechados e sem sorrisos. Mas tentámos quebrar o gelo e lá fomos distribuindo aquilo que trazíamos, sobretudo doces, chocolates ou barras de cereais.

E ao receberem o que lhes íamos dando, foram baixando as defesas e, envergonhadamente, lá foram esboçando alguns sorrisos, e aqueles olhos baços e carregados, com que nos olhavam, começaram a cintilar, ganhando um novo brilho e tornando-se meigos e afáveis.

Foram momentos de proximidade e de empatia, tão tocantes e genuínos, numa experiência avassaladora que deixou bem evidente que jamais iríamos conseguir esquecer aquelas crianças nómadas que o deserto nos revelou.
Photo by Marisa Martins   




Uma visão do infinito - Sul de Marrocos

Toda a zona de dunas do deserto de Erg Chebbi, no Sul de Marrocos, é rodeada por extensas planícies, igualmente secas e desertas, mas pedregosas e não com areia. Atravessar esta zona dá-nos uma sensação extraordinária de amplitude e de infinito, e o Ahmed, o simpático marroquino de origem berbere que nos conduzia, percebendo o clima de excitação que nos tinha tomado, sugeriu-nos que nos deixássemos ficar por ali algum tempo, mas sozinhos, sem a proteção do jeep nem dele próprio... desafiando assim o deserto... e desafiando-nos também a nós próprios.

E a sensação foi brutal e arrepiante, começámos por ver o jeep a se afastar e um silêncio denso a se instalar, num espaço que parecia não ter fim, e onde os únicos seres vivos que a vista alcançava éramos nós próprios, despojados de todos e quaisquer pertences, e alguns dromedários que vagueavam por ali à procura de pasto... e quanto aos seres que a vista não alcançava, imagino cobras e escorpiões, era melhor nem pensar.

Sentimos uma pequena amostra, apenas um leve sabor, daquilo que será enfrentar um espaço amplo como este, mas sem qualquer rede de segurança que nos ampare a queda. Chegámos a experimentar um ligeiro desconforto de nos vermos ali sozinhos, mas, na realidade, arriscávamos muito pouco, estávamos à distância de uma caminhada, uma simples, embora longa, caminhada, feita com uma estranha sensação entre o vibrante e o angustiante.

E no final reencontrámos o nosso jeep e o nosso porto seguro, onde o Ahmed nos esperava curioso pela reação de cada um de nós perante este pequeno desafio. Vínhamos sorridentes fazendo adivinhar que o deserto não nos tinha intimidado, mas certamente que cada um de nós se terá questionado, nem que por breves e inconfessáveis momentos, sobre a inconsciência de aceitar o desafio de deixar que o carro se afastasse... e nós ali, perdidos naquele infinito, sem nada que nos pudesse devolver ao mundo real.