Neste espaço que é suposto ser apenas de escrita de viagens, às vezes tornam-se inevitáveis as referências gastronómicas. Foi o que aconteceu quando descobri alguns dos verdadeiros sabores da comida algarvia, num restaurante que é também um verdadeiro representante da gastronomia da região, e que me proporcionou a experiência que me levou a escrever esta crónica.
Ao longo de vários anos fui conhecendo restaurantes na região do Algarve, desde as tascas mais tradicionais aos restaurantes estrelados pela Michelin, mas raramente me cruzei com os verdadeiros sabores da gastronomia regional.
E só em agosto de 2017, no restaurante “O Charneco”, localizado no coração de Estômbar, uma pequena vila de casas brancas, situada entre Lagoa e Portimão, pude desfrutar de uma degustação completa dos paladares desta região, na sua forma mais tradicional e genuína.
Fica logo atrás da igreja, o nome “Charneco” aparece sobre a porta, onde se refere também, para que não haja dúvida, que se trata de uma Tasquinha. A decoração é a que se espera de um restaurante típico e familiar, sem luxos nem grandes pretensiosismos, quase como se estivéssemos numa casa de família, com fotos e outros objetos pessoais. Na verdade, é um espaço descontraído onde nos sentimos bem, com um atendimento perfeito, também ele familiar. O Restaurante pertencia ao Sr. Charneco, mas, mais recentemente, a filha passou a ser a cozinheira . . . uma cozinheira que é muito mais chef do que muitos outros que assim se apelidam.
Explicam-nos apenas o conceito, vão trazendo os pratos que prepararam para aquele dia, e só temos de escolher as bebidas, que também estão incluídas no preço do menu.
Depois das bebidas e de um pão de fatia, que parecia o típico pão alentejano, mas que era um pão bem algarvio, começou o desfile das iguarias.
Começaram por servir uma entrada fria numa Tábua de Queijo e Presunto e umas tigelinhas com Azeitonas, com um Picadinho de Febra de Porco, com uma Salada de Cenoura à Algarvia e com umas fatias de Muxama de Atum em azeite. A muxama é um produto feito com a mesma receita que os fenícios e os romanos utilizavam há dois mil anos. Resulta de um antigo modo de processamento do peixe, utilizando os lombos do atum, que são curados em sal grosso e depois lavados para retirar o excesso de sal, resultando numa espécie de presunto do mar, e com o aspeto muito semelhante ao do presunto.
Da entrada passámos para a sopinha do dia, uma Tomatada quente com ovo, que em vez de escalfado tinha sido mexido na sopa, e que estava perfeitamente deliciosa.
Os pratos iam-se sucedendo e nem sempre nos diziam do que se tratava, deixaram alguns para que adivinhássemos - foi o que aconteceu com o prato seguinte - e não adivinhámos. Era uma salada fria e tinha o tempero habitual de uma salada de polvo, com cebola picada, azeite, vinagre e salsa, mas neste caso com umas batatas cozidas e com uma iguaria que eu nunca tinha provado - Ovas de Choco - uma verdadeira delícia.
Ainda nos frios, brindaram-nos com os tradicionais Carapaus Alimados, um prato dos mais típicos do Algarve, com os lombos de carapau salgados, que quase parecem de conserva, com rodelas de tomate algarvio, o chamado tomate rosa, e alho cru, para os mais corajosos.
A noite foi passando e o apetite começava já a escassear depois de, nos petiscos iniciais e de forma pouco cautelosa, termos abusado do pão e do vinho. Mas não íamos deixar de cumprir a empreitada até ao fim e, assim, fomos substituindo o vinho pela água e deixámos de molhar o pãozinho.
Chegaram os pratos quentes, mais um difícil de adivinhar. Eram pataniscas, isso dava para perceber, mas não eram de bacalhau. E de facto era um prato menos comum, tratavam-se de Pataniscas de Raia, também elas muito saborosas.
E era a hora de fazer uma pausa, ir até ao largo da igreja, apanhar ar e esticar as pernas, para regressar à mesa para um próximo round. E este era momento-chave para essa pausa . . . é que ainda faltava uma entrada, um parto de peixe e outro de carne, e uma sobremesa, ou seja, era como se estivéssemos agora a chegar ao restaurante.
E lá veio mais uma entrada quente e esta foi diretamente para o top. Não que se tratasse de algo raro, porque era apenas um prato de Ameijoas à Bolhão Pato, mas com ameijoas fresquíssimas da Ria de Alvor, o que fez com que o resultado final fosse sublime, talvez umas das melhores ameijoas que já provei.
E chegámos, por fim, aos pratos principais. O prato de peixe era um Arroz de Tamboril bem malandrinho (mas já em 2018, repeti a experiência e, dessa vez, este prato foi substituído por uma excelente Massada, também ela de Tamboril).
O prato da carne representava a influência árabe na gastronomia algarvia, um Borrego Assado com Hortelã (em 2018, este prato foi substituído por um Pernil de Porco). Quer o borrego quer o pernil estavam divinais, pena que, nessa fase, quase já não encontrávamos um espacinho no estômago. Estes jantares são uma espécie de maratona e, por isso, há que dosear o esforço para os últimos quilómetros . . . mas eu comecei logo a fazer sprints nos primeiros 100 metros.
E achávamos que tinha acabado, tínhamos lido que eram sete pratos e já tínhamos provado oito. Mas ainda havia uma sobremesa, ou melhor, um pijama de sobremesas algarvias, com o tradicional Figo Seco com Amêndoas, uma Tarte de Laranja, uma Tarte de Alfarroba e Canela e, o meu favorito, um Don Rodrigo, o doce regional com fios de ovos e amêndoa, que vem embrulhado num saquinho de papel de prata.
No final veio ainda um café servido num copinho de barro e a conta que, tal como tínhamos lido, foi de 25€ por pessoa.
Terminámos assim um jantar que se transformou numa experiência que nos ficou gravada na memória, com a autenticidade da gastronomia da região, incomparavelmente melhor do que a maioria dos restaurantes algarvios que tínhamos experimentado.
Ficámos completamente rendidos com tantos paladares e tanta comida, e totalmente satisfeitos. Fechámos uma noite, tão rica e tão extraordinária, com a certeza de que voltaríamos (e foi assim que, um ano depois, em agosto de 2018, voltámos a enfrentar o desafio que nos é propiciado e, uma vez mais, voltámos a ficar deslumbrados com a experiência que ali foi vivida.