sábado, 27 de janeiro de 2018

O poder do pôr-do-sol em Marraquexe

Em 1985 a UNESCO atribuiu o título de Património Mundial Imaterial à Praça Jemaa el-Fna, elegendo, dessa forma, não apenas aquele espaço que a praça ocupa, mas sobretudo a mística que a envolve e que faz dela um lugar inesquecível. 

Foi essa a mística que nos tocou logo na primeira tarde, mal tínhamos chegado a Marraquexe e corremos para aquele local, um autêntico coração palpitante da cidade, onde todas as suas artérias desaguam.

E não quisemos esperar mais, subimos de imediato à esplanada do Café Glacier e contemplámos toda a excitação de uma praça que despertava ali bem à nossa frente. E por lá nos deixámos ficar, por lá nos demorámos. Esperámos que o sol se pusesse e que o poder da noite se instalasse... e deixámos que aquele lugar mágico nos comovesse. 

E a imagem que nos ia envolvendo revelava agora os tons quentes do sol que se encobria por detrás da Mesquita da Koutoubia... despertando aquela praça imensa e dando-lhe vida, ritmo e brilho, à medida que o sol se ia escondendo.

Carlos Prestes 
Janeiro de 2018

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quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

O chá do deserto

No contacto com as famílias nómadas junto às dunas majestosas do deserto marroquino de Erg Chebbi, fomos convidados a entrar numa das suas tendas onde nos ofereceram chá e frutos secos em troca de nada, só pela hospitalidade e simpatia. 

Foi um chá diferente do habitual chá marroquino, saboroso como costuma ser o chá de menta, mas este com um significado muito especial, por nos ter sido oferecido por quem nada tem e, ainda assim, quis que nos sentíssemos bem-vindos.

E enquanto tomávamos o chá nem imaginávamos como é que conseguiriam garantir reservas de água para toda a família num local tão ermo como aquele, sem quaisquer vestígios de ribeiros ou nascentes. E só mais tarde soubemos algo surpreendente, é que o deserto de dunas contém água no seu subsolo a poucos metros de profundidade. E é a partir de poços feitos nessa zona de extensos areais que as famílias nómadas se abastecem.

E foi então que percebemos qual era o meio de transporte usado para o abastecimento de água e, sobretudo, qual era o sistema de armazenamento... confesso que foi um pouco assustador, pensar que a água do nosso chá tinha vindo daqueles garrafões... felizmente a água é bem fervida e, com sorte, terá matado toda bicheza.
Depois de algum tempo junto àquela família de nómadas, saímos do acampamento com uma sensação estranha, como se a vida daquelas pessoas nos tivesse sido revelada como um ensinamento, uma lembrança que não iríamos esquecer e que nos deveria servir de referência para alguns momentos e decisões importantes das nossas vidas.

Os nómadas marroquinos

Pensávamos estar prontos para todo o tipo de experiências durante a viagem que íamos fazer até ao deserto marroquino de Erg Chebbi, mas nada nos podia preparar para momentos como aqueles que vivenciámos no contacto direto com os nómadas... famílias que optam por uma forma de vida sem destino e sem imposição de regras, preservando acima de tudo a sua liberdade.

Pode parecer uma visão algo poética desta condição mas, pelos relatos do Ahmed, o driver berbere que nos acompanhou por estas paragens, e que entende bem o espírito e a motivação destes povos, apercebemo-nos que, para eles, o mais importante é a sua condição de seres livres e donos do seu próprio destino. Rejeitam as regras a que os sistemas de comunidades ou aldeias se obrigam, e rejeitam também a própria cidadania, não se sentem marroquinos ou argelinos ou de qualquer outro país, são cidadãos livres de um deserto sem fronteiras e, naturalmente, não reconhecem qualquer legitimidade à figura do rei de Marrocos... revêm-se apenas em Alá enquanto muçulmanos devotos. 

Um dos maiores problemas daquele modo de vida, contou-nos o Ahmed, numa revelação surpreendente, é a dificuldade em fazer com que as crianças consigam ir à escola. Que coisa estranha e ao mesmo tempo tão fascinante, vidas totalmente despojadas de bens de conforto, mas conscientes da importância de levar as suas crianças à escola, para lhes abrir horizontes e dar-lhes a possibilidade de poderem fazer as suas próprias escolhas na altura certa. 

Soubemos no início do dia que nos iríamos cruzar com algumas crianças nómadas, porque o Ahmed quis levar bolos e guloseimas para lhes dar, mas não estávamos à espera de uma proximidade tão tocante, nem de uma experiência tão rica. 

Estivemos com grupos de crianças de várias famílias e em vários locais, e todas tinham aquele olhar envergonhado, com os rostos fechados e sem sorrisos. Mas tentámos quebrar o gelo e lá fomos distribuindo aquilo que trazíamos, sobretudo doces, chocolates ou barras de cereais.

E ao receberem o que lhes íamos dando, foram baixando as defesas e, envergonhadamente, lá foram esboçando alguns sorrisos, e aqueles olhos baços e carregados, com que nos olhavam, começaram a cintilar, ganhando um novo brilho e tornando-se meigos e afáveis.

Foram momentos de proximidade e de empatia, tão tocantes e genuínos, numa experiência avassaladora que deixou bem evidente que jamais iríamos conseguir esquecer aquelas crianças nómadas que o deserto nos revelou.
Photo by Marisa Martins   




Uma visão do infinito - Sul de Marrocos

Toda a zona de dunas do deserto de Erg Chebbi, no Sul de Marrocos, é rodeada por extensas planícies, igualmente secas e desertas, mas pedregosas e não com areia. Atravessar esta zona dá-nos uma sensação extraordinária de amplitude e de infinito, e o Ahmed, o simpático marroquino de origem berbere que nos conduzia, percebendo o clima de excitação que nos tinha tomado, sugeriu-nos que nos deixássemos ficar por ali algum tempo, mas sozinhos, sem a proteção do jeep nem dele próprio... desafiando assim o deserto... e desafiando-nos também a nós próprios.

E a sensação foi brutal e arrepiante, começámos por ver o jeep a se afastar e um silêncio denso a se instalar, num espaço que parecia não ter fim, e onde os únicos seres vivos que a vista alcançava éramos nós próprios, despojados de todos e quaisquer pertences, e alguns dromedários que vagueavam por ali à procura de pasto... e quanto aos seres que a vista não alcançava, imagino cobras e escorpiões, era melhor nem pensar.

Sentimos uma pequena amostra, apenas um leve sabor, daquilo que será enfrentar um espaço amplo como este, mas sem qualquer rede de segurança que nos ampare a queda. Chegámos a experimentar um ligeiro desconforto de nos vermos ali sozinhos, mas, na realidade, arriscávamos muito pouco, estávamos à distância de uma caminhada, uma simples, embora longa, caminhada, feita com uma estranha sensação entre o vibrante e o angustiante.

E no final reencontrámos o nosso jeep e o nosso porto seguro, onde o Ahmed nos esperava curioso pela reação de cada um de nós perante este pequeno desafio. Vínhamos sorridentes fazendo adivinhar que o deserto não nos tinha intimidado, mas certamente que cada um de nós se terá questionado, nem que por breves e inconfessáveis momentos, sobre a inconsciência de aceitar o desafio de deixar que o carro se afastasse... e nós ali, perdidos naquele infinito, sem nada que nos pudesse devolver ao mundo real.