terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Um excitante walking safari na Suazilândia

Estava em Maputo num dia de dezembro de 2014 e resolvi pegar no carro e seguir para Sul, chegar à fronteira e atravessar até à Suazilândia. Por não ter companhia decidi seguir viagem sozinho. O meu carro era um jeep, daqueles que nunca nos deixam ficar mal, o que, em África, é essencial e, por isso, senti-me com coragem suficiente para enfrentar o desafio. 

A Suazilândia é um pequeno país entalado entre a África do Sul e Moçambique, com muitas influências sul-africanas, nomeadamente na capital, onde se encontram os sinais de modernidade das cidades mais desenvolvidas. No entanto, quando conhecemos algumas aldeias e quando nos apercebemos do tipo de leis com que se regem, concluímos que se trata de um país perfeitamente tribal, onde a modernidade que se encontra na capital é apenas uma fachada decorativa. Só como exemplo de alguns dos hábitos locais que nos chocam, para além da poligamia, uma prática habitual, o Rei, todo-poderoso, tem mesmo o direito a escolher de 2 em 2 anos uma nova concubina, numa cerimónia pública onde se juntam algumas dezenas de virgens, para que ele possa escolher a nova Rainha, que se vai juntar a mais uma dúzia delas, escolhidas nos anos anteriores. 

De qualquer forma, a minha intenção não era avaliar os hábitos do reino da Suazilândia, o meu objetivo era apenas passar um dia em safari no Royal National Park Hlane, um parque natural, propriedade de Sua Majestade, o Rei. 

O Hlane fica a apenas a 120Km de Maputo mas, em África, uma viagem dessas não é bem a mesma coisa do que em qualquer outro local. Não sabemos o que nos pode acontecer, se existem cortes de estrada, se a polícia nos manda parar para nos multar, ou para lhes pagarmos um “refresco”, e principalmente porque havia uma fronteira para atravessar e aí os problemas podem ser bem mais complicados. Nestes países, os habitantes são normalmente cordiais e afáveis, mas aqueles que detêm um pequeno poder, como polícias, funcionários da alfândega, alguns funcionários públicos, por exemplo os que tratam dos vistos, sempre que o poder lhes está nas mãos, ainda que seja um poder minúsculo, o comum é haver sempre um abuso desmesurado desse poder, chateando-nos até à exaustão para nos levar a tentar resolver o assunto de forma mais ágil. Lá superei os vários guardas da alfândega, com formulários intermináveis para preencher, desde o número do chassis do carro, às minhas moradas todas, em Moçambique, na Suazilândia e no resto do mundo. E lá cheguei ao Hlane

Comecei por fazer um safari num Land Rover, daqueles abertos, sem portas nem janelas, que percorrem o parque e nos dão a sensação de proximidade com os animais . . . às vezes chega mesmo a criar-se um certo desconforto tendo em conta o convívio com algumas espécies menos amistosas. 

O parque tem três secções distintas. Uma mais soft, onde o Rei costuma fazer caçadas e que é sobretudo ocupada pelos animais mais pacíficos, impalas, zebras e girafas, e também algumas famílias de rinocerontes. Uma outra zona, mais da pesada, com todo o tipo de bichos, como elefantes, búfalos e leões. A terceira zona é uma reserva de proteção de rinocerontes onde se encontram algumas dezenas destes imponentes animais. Foi por essas três zonas do parque que o jeep deambulou durante toda a manhã, e é sempre fantástico o contacto próximo com certos animais, sobretudo as manadas de elefantes que são sempre fascinantes.

Mas à tarde tinha ainda um outro desafio, um excitante walking safari. É concebido principalmente para apreciarmos as aves do parque, mas, como se percorre um espaço com muitas outras espécies, adquire um interesse que vai muito para além da observação dos passarinhos. 

As aves interessavam-me pouco, a menos de uns abutres, a que achei uma certa piada, porque me lembram sempre o imaginário dos filmes de animação e, sobretudo, das águias, e em especial da águia de cabeça branca, imponente e real, quase tão majestosa como a águia do Benfica. 

Mas o interesse principal deste walking safari foi a adrenalina de percorrer um espaço ocupado por espécies selvagens, sem a proteção do Land Rover, mas apenas com um guia, ou Ranger, que nos acompanhou de carabina devidamente preparada para qualquer eventualidade. 

E começaram a aparecer os animais do costume, mas que, agora, me pareciam muito mais próximos, por vezes até, demasiadamente próximos. Enquanto foram as impalas e os javalis, não me cheguei a assustar, mas as zebras e as girafas, já me deixaram mais apreensivo, embora, estas últimas, sejam animais extraordinários . . . bonitas, majestosas, elegantes e, tanto quanto pude observar, pacíficas. 

Mas o meu maior receio era a possibilidade de aparecerem rinocerontes, embora, naquela zona, existissem apenas algumas famílias. Mas acabámos mesmo por avistá-los e até bem perto de nós, mas, aparentemente, estavam pacíficos em torno de um charco, provavelmente mais interessados na vidinha deles do que naqueles curiosos que por ali andavam, e isso foi uma ótima notícia. Mas apesar do aparente pacifismo daqueles bichos, durante todo o tempo em que ali estive e os observei, o coração palpitava com uma força que quase me saía pela boca. 

E enquanto regressávamos no final desta aventura e os nervos acalmavam, seguimos ainda a mais bela das girafas que tínhamos encontrado, caminhando vaidosa, ocupando o caminho como quem desfila por uma passerelle, rebolando-se para um lado e para o outro. 

Acabei este passeio como quem cumpre um desafio, como quem alcança o cume de uma grande montanha, cansado da caminhada e sobretudo trémulo da adrenalina, mas muito compensado por um dia de emoções fortes, daquelas com que a vida se constrói. 

Carlos Prestes
Dezembro de 2014

sábado, 13 de dezembro de 2014

Um inesperado orgulho lusitano - Cabo da Boa Esperança

Num dia escaldante de dezembro de 2014 deixei a Cidade do Cabo para uma jornada que se adivinhava desafiante. Saindo da costa atlântica pela manhã, iria chegar às praias do Índico ao final da tarde e, pelo caminho, teria de transpor o cabo mais meridional do continente africano, um local que toda a vida me inspirou, pela sua história e a sua localização geográfica, mas sobretudo pelo simbolismo que sempre lhe esteve associado, ora de tormentas ora de boa esperança.

E é natural que nós, portugueses, nos tenhamos habituado a ver este cabo como um símbolo das conquistas lusas, e é aqui, mais do que em qualquer outro lugar, que nos pode fazer algum sentido a frase patriótica com que começa o nosso hino invocando os “heróis do mar”, sem nome e sem rosto, mas os primeiros a fazerem da tormenta uma boa esperança.

E algumas horas depois, já no parque natural do Cape of Good Hope, parei junto a um monumento muito especial, o Padrão de Bartolomeu Dias, o navegador português que, em 1488, conseguiu, pela primeira vez, dobrar o cabo que ele próprio havia apelidado de Cabo das Tormentas. A passagem por aquela extremidade de África foi de uma importância vital para a campanha dos descobrimentos portugueses, pois mostrou, pela primeira vez, a ligação entre o oceano Atlântico e o oceano Índico, prometendo a tão desejada chegada à Índia. Mais tarde seria Vasco da Gama, outro português, a fazer a segunda passagem registada por aquele local, já na sua caminhada marítima até à Índia. E, por isso, figuravam ali duas placas alusivas aos dois navegadores portugueses.

E foi incrível a sensação que experimentei junto a um monumento como aquele, que não é mais do que uma peça de betão simbolizando os antigos padrões erguidos pelos navegantes. Mas a verdade é que me senti tocado por aquele símbolo, com qualquer coisa de patriótico que não costumo sentir. E, por isso, foi natural ter decidido ficar por ali algum tempo, numa reflexão introspetiva, e quase religiosa, que me pareceu até um pouco estranha, para quem, como eu, nunca valorizou particularmente as façanhas dos descobrimentos.

E ali estava eu, naquele local tão improvável, perante um símbolo de conquistas lusitanas, com um inusitado orgulho patriótico, por fazer parte de uma nação passada que quase ignorei, sentindo, inesperadamente, uma honra muito especial em ser português.
E este orgulho lusitano tocou-me de tal forma que, mal tive companhia junto ao monumento, uma carrinha cheia de turistas sul-africanos, aproximei-me e apontei para as placas com as mini biografias de Bartolomeu Dias e de Vasco da Gama e disse, com vaidade: estes são dois heróis portugueses, e são do meu país, de Portugal . . . e acrescentei ainda, só para os localizar: eles e o Cristiano Ronaldo.

Carlos Prestes
Dezembro de 2014


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

No reino do leão (marinho) - Hout Bay (South Africa)

A baía de Hout Bay estava deslumbrante naquela manhã quente de dezembro. Era uma praia típica desta região do extremo sul de África, com um extenso areal quase deserto e um espelho de água magnífico, cortado apenas pelo rasto de duas ou três pequenas embarcações que seguiam sob o esforço das fortes remadas de alguns atletas madrugadores. Mas ninguém que se aventurasse a um mergulho, apesar do aspeto tão convidativo daquelas águas . . . e mais tarde iria perceber porquê. 

Mas deixei a praia para depois e segui diretamente até ao Hout Bay Harbour, o porto onde iria apanhar um barco que me levaria a visitar a Duiker Island, também conhecida localmente como Ilha das Focas. É um ilha pequena, com menos de 100m por 80m, mas é um verdadeiro santuário ecológico, pela sua fauna magnífica, com algumas espécies de aves exóticas e, sobretudo, com uma comunidade imensa de leões-marinhos. 

Saímos de barco pela da zona do porto, onde o mar é calminho mas, à saída da baía, começámos a ser fustigados pelas ondas que ali se formavam, o que me deixou com algum desconforto, sobretudo imaginando no que poderia acontecer se o tempo virasse repentinamente, porque, aquele era um daqueles dias em que está o chamado mar-chão e, ainda assim, o barco começava a baloiçar energicamente. 

E ao nos aproximarmos da ilha, o ambiente mudou radicalmente e o espetáculo começou . . . toda a plataforma do rochedo estava coberta por leões-marinhos, centenas deles, enquanto outros nadavam em rodopio junto ao barco, como que interagindo com os passageiros. E o cheiro tornou-se intenso, quase nauseabundo, a humidade do ar intensificou-se, o vento ficou mais forte e mais frio, mesmo num dia quente como aquele, e o mar começou a ficar agitado e com fortes correntes. Era a natureza que nos avisava, mostrava-nos que aquele não era o nosso território, ali mandava o leão, não o outro, o rei da selva, mas este magnífico leão dos mares. 
Foi uma experiência fugaz, estivemos menos de 15 minutos em torno da ilha, mas bastante marcante, e chegou mesmo a criar alguma ansiedade, principalmente pelos movimentos, bruscos e arriscados, com que barco fintava as ondas e fugia dos rochedos. Mas é muito interessante podermos observar tantos animais daqueles no seu habitat perfeitamente selvagem, como nunca os tinha visto anteriormente, só os conhecia de jardins zoológicos ou parques aquáticos, onde são todos previamente amestrados.

Regressados de novo a Hout Bay a paisagem da baía continuava maravilhosa vista a partir do mar, com as montanhas ao fundo, contornando a costa de areia branca e fina. À entrada do porto fomos recebidos por mais alguns leões-marinhos, tresmalhados do grupo e curiosos em relação ao mundo dos humanos, esperando-nos numa espécie de bailado de saltos e piruetas.

Saí do barco e segui até à praia para experimentar um mergulho naquele mar, ainda deserto de banhistas. E lá fui eu, estávamos a apenas 50km do Cabo e não queria deixar de entrar naquelas águas onde os grandes mares se juntam, e inscrever esse feito no meu curriculum. Mas, na verdade, mal consegui cumprir esse objetivo. . . era a água mais fria onde alguma vez tinha tentado nadar. Os ossos começaram a latejar e desisti da façanha de fazer ali umas boas braçadas. Resolvi regressar com a água ainda pelo meio das pernas, para evitar eventuais males maiores.

Era certamente essa a razão pela qual não se via ninguém a tomar banhos de mar . . . como é possível que a natureza tenha brindado estas terras com praias magníficas de areia fina e muito branca e águas de um azul vivo, e depois as tenha arrefecido até . . . sei lá, uns 12 graus, no máximo. E mesmo para aqueles que tentassem vestir um fato de surf para se protegerem do frio, existe ainda um outro probleminha, o risco do grande tubarão branco, que anda muito por estas bandas. 

Carlos Prestes 
Dezembro de 2014

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quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Um chá das cinco ao jeito colonial - Cape Town

Comecei a visita à cidade de Cape Town num dia escaldante de dezembro pela zona mais moderna, o Waterfront, junto ao antigo porto, reabilitado recentemente, no âmbito dos trabalhos feitos para o mundial de futebol de 2010, que a África do Sul organizou. Atualmente esta é a área com mais movimento de toda a cidade, parece um enorme parque de diversões, com um grande centro comercial que desemboca na marina, cheia de restaurantes e esplanadas, bares e outro tipo de atrações, como uma roda gigante, e com vários artistas de rua, que vão animando quem por ali passa. Na marina, ou porto de recreio, os barcos entram e saem constantemente, para pescarias, para visitas às ilhas, ou mesmo para um longo passeio que leva os passageiros mais corajosos a mergulhar numa gaiola para observar, bem de perto, o misterioso mundo do grande tubarão branco.

Fiquei encantado, o local é extraordinário, prendeu-me logo, mal tinha acabado de chegar. Mas, pelo ambiente e pela arquitetura, nem parecia que estava em África, embora, ao mesmo tempo, sentiam-se alguns traços daquela mística africana, de que tanto se fala. É algo que se capta no ar, talvez pelas pessoas com que nos vamos cruzando, talvez pela mistura das suas diferentes origens, africanas e europeias.

Os atuais sul africanos, resultam duma mistura das populações indígenas com os descendentes de europeus, mas mesmo esses, têm origens bem diferentes, uns são britânicos e outros são os chamados Bóeres. Os Bóeres descendem dos colonos calvinistas, sobretudo da Holanda, mas também da Alemanha, da Dinamarca e de França, que se estabeleceram na África do Sul nos séculos XVII e XVIII, cuja colonização vieram a disputar, posteriormente, com os britânicos. Desenvolveram uma língua própria, o afrikaans, derivado do holandês, mas com influências de algumas línguas indígenas de África. Assim, em qualquer cidade sul-africana, falam-se correntemente três dialetos, o inglês, o afrikaans e o dialeto da comunidade negra local que, em Cape Town, é o zulu. E talvez tenha sido essa mistura das comunidades locais, que me fez pressentir a existência da tal magia africana.

Mas neste dia ainda não me queria demorar muito na zona do porto, tinha toda uma cidade para explorar e iniciei um percurso que me levou diretamente ao downtown e pela zona histórica, até à Grand Parade, a imensa praça junto ao City Hall e ao Castle of Good Hope.

Atravessei depois o parque da cidade, The Company's Garden, um jardim com uma vegetação abundante e vários edifícios coloniais majestosos . . . e que é marcado pela figura imponente, lá ao fundo, da Table Mountain, o grande planalto, sempre visível, sempre presente, como que a proteger a cidade.

E do lado oposto do Company's Garden cheguei finalmente ao Mount Nelson Hotel, um dos hotéis de charme da cidade, e que era também o único destino que tinha sido programado com hora marcada - as cinco horas em ponto - the tea time.

Seguindo o conselho duns amigos, a Sónia e o Miguel Gião, entrei neste hotel rigorosamente às cinco horas para experimentar aquele que era referenciado como o melhor chá das cinco do mundo. Não sei se será ou não o melhor do mundo, mas posso assegurar que a experiência foi inesquecível. 

O Mount Nelson Hotel, conhecido também como o Palácio Rosa, “oferece” um chá muito especial, que várias figuras do mundo da cultura, escritores e jornalistas, e até bloggers - e agora também eu - têm registado nas respetivas crónicas de viagem. Começa pelo ambiente . . . não sei de onde saem, mas a sala parece fazer parte da antiga colónia inglesa da Índia, com as famílias vestidas a rigor com as suas sedas e caxemiras. Depois é o enorme prazer da degustação, encontramos pequenas e delicadas sanduíches com recheios requintados, como salmão fumado, por exemplo. Os scones ingleses, não podiam faltar, e foram mesmo os meus preferidos. Um bolo de chocolate escuro, muito amargo para o meu gosto, merengue de limão, biscoitos ainda quentes, com creme de natas, e uma tarte de leite tipicamente sul-africana que, em afrikaans, é chamada de melktert . . . e muito, muito mais.

Mas a grande marca do Mount Nelson Tea é o próprio chá, que é obtido a partir de uma mistura, habilmente conseguida, de seis chás diferentes, Darjeeling, Quénia, Assam, Keemun, Yunnan e Ceilão, e pétalas de flores colhidas no próprio jardim do hotel. O chá das cinco é servido no salão, no terraço ou no jardim, ao redor da fonte, pelo custo (pelo menos para quem não é hóspede) de 265 Rand por pessoa, cerca de 20 € - os 20 € mais bem empregues da minha vida.
Depois de uma tremenda satisfação e quase comoção, mais pela experiência do que pelo banquete, saí daquele hotel como se quem regressa de uma antiga colónia do império inglês, de que a Cidade do Cabo foi um pilar fundamental, naquelas paragens a Sul do continente africano.

Faltava ainda passar pela Long Street, a rua mais carismática da cidade, onde, ao contrário dos locais que tinha visitado, se fazia notar bastante a presença da maioria negra. A Long Street é famosa por ser uma zona boémia, que apresenta sinais de uma cultura diversificada. Existem vários tipos de lojas, livrarias, alguns restaurantes e bares. Era esta a zona dos teatros onde passavam as peças de protesto anti-apartheid durante os anos 70 e 80, mas a maioria já fechou tendo sido substituídos por restaurantes ou lojas. Arquitetonicamente a rua é conhecida pelo seu estilo colonial, com construções vitorianas, com varandas de ferro forjado. Tanto pelo aspeto das casas, como por ser uma zona em que se nota o palpitar de um ambiente boémio, e até porque a maioria dos frequentadores locais são negros, esta rua parece claramente uma parte da Bourbon Street de New Orleans, nos Estados Unidos. 

Entrei no mais carismático dos locais desta zona, o Long Street Café, um bar e restaurante enorme, com espaço para perto de uma centena de pessoas, frequentado sobretudo por negros, naquele dia bem animados, enquanto assistiam a um jogo de futebol que passava nos ecrãs gigantes e que terminou com a vitória do clube local, o Kaizer Chiefs, que ganhou, não só o jogo como também o campeonato, provocando uma onda de festejos eletrizantes e quase assustadores . . . contrastando com o mundo diametralmente oposto, ao jeito colonial, onde me tinham acabado de servir um requintado chá, havia menos de uma hora.

A tarde chegava ao fim e a noite começava a cair, num dia de emoções intensas, uma autêntica montanha-russa, num momento no seio da nobreza colonial britânica, tomando chá e, no momento seguinte, já numa África mais profunda, no meio de festejos, que eram de futebol, mas quase pareciam um protesto anti-apartheid

Regressei ao Waterfront, onde jantei numa das esplanadas à beira-mar, terminando assim este dia grande, perfeitamente incrível e inesquecível e, naquela noite, ainda quente e acolhedora, detive-me ainda numa enorme curiosidade, pelo menos para mim que nunca tinha vivido um dezembro no hemisfério Sul, ao ver a paisagem enfeitada por uma enorme árvore de Natal, contrastando com o calor que ali se fazia sentir.

Carlos Prestes
Dezembro de 2014

domingo, 16 de novembro de 2014

Um encontro assustador - Kruger Park

Um dos desafios mais arrojados e excitantes que pode ser experimentado durante um safari pela savana africana, é deixarmo-nos aproximar das grandes manadas de elefantes com que nos cruzamos. Quando se dá o encontro, desligamos o carro e ficamos em silêncio a observar aquele espetáculo extraordinário, com as fêmeas majestosas e as suas crias, que não param de andar, em caminhadas intermináveis, e passam ali mesmo, a escassos metros. Normalmente os elefantes aceitam a nossa presença com naturalidade mas às vezes podem surgir algumas reações menos cordiais . . . como nos iríamos aperceber mais tarde.

Éramos quatro e estávamos há dois dias no Kruger Park, na África do Sul, onde percorremos todos os trilhos na nossa própria viatura, sem qualquer apoio dos seguranças do parque, os chamados Rangers, mas também sem quaisquer limitações de percursos ou locais de paragem. Andámos assim de uma forma mais livre, sobretudo conhecendo os caminhos, e um dos nossos parceiros de viagem conhecia bem o parque. Há uma regra fundamental que é nunca sair do carro, é uma imposição das autoridades e é algo que acaba por nos dar uma certa sensação de segurança, mas que pode ser apenas aparente, um carro não é assim uma proteção tão eficiente, sobretudo quando pensamos nos animais mais corpulentos. 

Nestes dias em que explorámos o Kruger Park tivemos a sorte de encontrar todo o tipo de animais, uns mais ao perto e outros só de longe, dos mais pequenos aos “big five”, todos se mostraram em vários grupos e em variados locais.

Ao fim de dois dias completos a percorrer as centenas de trilhos que atravessam o parque, ficamos com uma sensação de falsa normalidade, parece que a vida é mesmo assim . . . como quem se costuma cruzar com um cão ou com um gato, ali é normal encontramos impalas ou girafas, por todo o lado, mas também outros bichos maiores, como búfalos, rinocerontes ou elefantes. E há ainda os hipopótamos e os crocodilos, que aparecem junto aos lagos e rios, e também os leões e leopardos, mas esses bem mais reservados.

E, naturalmente, com o passar do tempo, começamos a descontrair e a ficar mais à vontade com os animais que, aliás, também costumam estar bastante familiarizados com a presença de veículos e, por isso, nos parecem mais ou menos afáveis.

E com essa descontração toda começámos a ir um pouco mais além, sobretudo tentando interagir com as manadas de elefantes, as grandes famílias em que as fêmeas conduzem as crias, porque os machos costumam vaguear sozinhos e são tão grandes que nos assustam logo à distância. E fomos repetindo várias vezes essa experiência . . . chegávamos bem perto da manada, muito lentamente, desligávamos o carro e deixávamo-nos ficar observando as suas reações e curtindo as nossas próprias emoções, com o coração a acelerar e a adrenalina  a pulsar. 
Mas as reações destes animais imponentes nem sempre são iguais . . . numa das paragens ficámos, como sempre, com o jeep desligado, enquanto a manada passava tranquilamente, fêmeas e crias em fila indiana num ritmo calmo.

Mas, de repente, uma fêmea fez questão de marcar o seu território mostrando-nos que ali era ela quem mandava. Desviou-se do curso da manada e dirigiu-se na nossa direção, parou a um par de metros do jeep, abriu as orelhas e fixou-nos alguns segundos, que nos pareceram longos minutos. Depois de achar que já tinha passado a mensagem, desviou o olhar e seguiu o seu caminho, deixando-nos numa tremedeira pelo grande susto que ela nos pregou. 

E enquanto isto se passava mantive ainda o sangue frio para continuar a filmar sem parar, o que me permitiu a gravação deste vídeo que me ajuda a recordar a história daquele encontro assustador.
No final acabou tudo bem, foi uma experiência impressionante de proximidade com a vida selvagem e sobrou ainda esta história fantástica para contar e recordar.

Carlos Prestes
Novembro de 2014

terça-feira, 15 de abril de 2014

A praia do milagre - White Cliffs of Dover

Acabado de chegar a Gatwick percorri os primeiros 140 km para Leste, até ao Canal da Mancha, sempre com uma estranha sensação de quem conduz perigosamente fora-de-mão. Era o meu primeiro percurso desta viagem por Inglaterra e escolhi começar pela cidade de Dover, uma zona portuária, onde saem e chegam as principais ligações via marítima para a travessia da Mancha, e é também onde o túnel ferroviário, que liga Inglaterra ao velho continente, se afunda sob as profundezas do canal. 

Mas aquilo que me levou a Dover não foi, nem a cidade nem as infraestruturas portuárias, mas antes as grandes falésias, as White Cliffs of Dover, que definem o contorno da ilha e marcam a fronteira entre o mar e a terra, na parte mais estreita do canal. 

Pertencem a um parque natural preparado para acolher os visitantes, onde fizemos uma longa caminhada pelos estreitos carreiros assinalados no mapa. Chegámos assim aos pontos de observação preferencial sobre as falésias, experimentando uma sensação vertiginosa e quase assustadora, sobretudo nalguns dos trilhos mais marginais. 

O local é imponente e as falésias muito altas, chegando aos 110 m de altura, e quase verticais, caindo abruptamente sobre ao mar, parecendo perigosamente instáveis e na iminência de uma derrocada. E depois há aquela cor branca tão rara, pela sua composição à base de giz, e que faz com que a imagem deste local seja tão especial e quase um ex-libris da ilha. 

Mas estas falésias valem muito mais do que apenas a paisagem que observamos. São também um símbolo importante para a Inglaterra, por constituírem uma primeira muralha com que as invasões inimigas se depararam, sempre que o país foi ameaçado pelo exterior ao longo da sua história. E num dos momentos mais simbólicos em que as falésias de Dover foram inscritas na história deste país, aconteceu em plena Segunda Guerra Mundial, em maio de 1940. 

As forças alemãs atacaram os Países Baixos derrotando as tropas francesas e a Força Expedicionária Britânica, que defendiam aquela zona Ocidental da Europa, e começavam a dirigir-se até ao Canal da Mancha. Apesar dos esforços das forças aliadas não foi possível conter o avanço alemão, que foram empurrando as tropas inglesas até à praia francesa de Dunkirk, onde ficariam encurraladas à mercê dos ataques alemães. 

Antecipava-se uma terrível carnificina e uma derrota épica para as tropas britânicas, com cerca de 400 mil soldados, completamente impotentes face ao poder dos ataques alemães, presos entre o mar e o exército e a aviação inimigos. 

Mas, do outro lado do canal, Winston Churchill planeava uma operação arrojada de resgate. A Royal Air Force enviaria vários aviões para travar as ações da força aérea alemã mas, ainda assim, um resgate de tantos soldados por mar obrigaria a uma frota de embarcações de que a Inglaterra não dispunha, nem conseguiria obter, apesar dos esforços junto dos aliados, nomeadamente dos Estados Unidos. 

Foi assim, por não lhe restar outra solução, que Churchill arriscou uma intervenção ambiciosa e inédita, conhecida como "Operação Dínamo", apelando a todos os proprietários de pequenas embarcações de pesca ou recreio que, respondendo afirmativamente, atravessaram o canal chegando a Dunkirk para recolha dos compatriotas em perigo. E foi dessa forma, em milhares de pequenos barcos tripulados por civis, que foram resgatados cerca de 400 mil soldados, maioritariamente britânicos, num desfecho que Churchill apelidou de “Milagre de Dunkirk”. 

No final de cada trajeto de resgate, os soldados britânicos, que escapavam desesperadamente a uma morte quase certa, encontravam o seu porto seguro e uma sensação acolhedora de redenção, quando na linha do horizonte se materializava a silhueta das imensas Cliffs of Dover, aquela praia inglesa que era também a imagem de um milagre e o consolo emocionado de um regresso a casa. 
E do alto das falésias de Dover, ao contemplar o mar infinito, ali à nossa frente, era bem evidente a sensação de que aquele lugar guardava muito mais do que aquilo que nos parecia mostrar. Um imenso lastro de séculos de história e uma carga mística incontornável, por tantos episódios, como este, o Milagre de Dunkirk, que ali fomos recordando desordenadamente, enquanto o vento forte nos acariciava o rosto. 

E para lá do que a vista alcançava notava-se ainda o tremendo poder do mar, fazendo-nos adivinhar a presença do imenso continente que ali se escondia logo depois da bruma que nasce nas águas, bem na linha do horizonte. 

Carlos Prestes
Abril de 2014